Antes de mais nada, gostaria de me desculpar com vocês, caras leitoras e caros leitores, por uma recorrente verve saudosista que vem aflorando nos meus últimos artigos para esta newsletter. Pessoalmente, confesso que tal estilo me desagrada, uma vez que quase sempre remete a uma visão irreal e até deplorável, comum em muitas pessoas que, como o rei Lear de Shakespeare, na definição do seu incomparável bobo da corte, ficaram velhas antes de adquirir a sabedoria. Refiro-me a esse vício mental de achar que tudo o que havia antes era melhor do que aquilo que existe hoje, e que a história da humanidade não passa de um processo irreversível de decadência progressiva. Quarenta anos dedicados ao estudo da História, acredito, devem ter servido para me vacinar contra essa enfermidade tão característica daqueles que atingem os representantes da “melhor idade” e que parece ser mais prevalente do que o mal de Alzheimer. Entretanto, a combinação de formação e prática profissional de historiador e o acúmulo de quase seis décadas de vivências e experiências propiciaram-me a possibilidade de usar minhas próprias lembranças como fonte de análise para a comparação entre presente e passado, que é o fundamento do ofício daqueles que trabalham sob os auspícios da musa Clio – uma das nove filhas da deusa Mnemosyne, inspiradora da arte de recontar os eventos do passado. Talvez se possa contestar que tal procedimento não seja lá muito ortodoxo e, para além disso, seja até suspeito. Porém, sendo a liberdade e a heterodoxia dois dos poucos privilégios da maturidade, reivindico o direito e com isso dou-me por satisfeito em me justificar a vocês, leitoras e leitores, ainda que muito provavelmente não venha a convencer-lhes. Bem, de qualquer forma, aceitas ou não minhas desculpas, passemos a mais uma reflexão com tom supostamente saudosista.  

Em minhas lembranças da infância, o mês de dezembro remete a luzes. Não tenho dados estatísticos para apresentar, tampouco provas materiais, mas arrisco afirmar que nas décadas de 60 e 70 do século passado o número de ruas e casas iluminadas por luzinhas decorativas era significativamente superior ao que se vê hoje em dia. Admito que quando somos crianças estamos constitutivamente mais atentos do que quando atingimos a idade desgraciosa para esse tipo de detalhe. Contudo, declaro que andei realizando uma ampla pesquisa informal com muitos coetâneos, e todos foram unânimes nesta constatação. É claro que se pode objetar que as minhas fontes padecem do mesmo viés. Afinal, todas as pessoas pesquisadas eram crianças como eu naquela época. Não obstante, todo bom pesquisador sabe que a saturação quantitativa é um índice bastante importante na constituição da confiabilidade. Assim, se esta afirmação não for produto de uma simples ilusão saudosista, mas, ao contrário, uma constatação objetiva (o que acredito firmemente), parece-me que estamos diante de um fenômeno social de grande relevância e significativo impacto existencial: o desaparecimento – ou pelo menos o preocupante enfraquecimento – do caráter celebrativo da vida.  

Em diferentes culturas e épocas históricas, lanternas e luzes foram e ainda são adereços associados ao tempo de festa, de celebração. A luz representa a vitória do cosmos frente ao caos, da alegria frente à tristeza, da esperança frente ao desespero, do novo frente ao velho, da vida frente à morte. O tradicional costume de decorar as ruas, as fachadas e o interior das casas com velas, lâmpadas e luzes, principalmente nesta época do ano, não tem qualquer sentido prático, como o de melhorar a segurança urbana, mas sim uma finalidade celebrativa. O desaparecimento paulatino desse costume indica, portanto, que estamos dando cada vez menos importância para estes tempos antes tão valorizados: tempos de festejar, de celebrar. 

Celebração é palavra de origem latina (celebratio) que deriva de um vocábulo grego que remete à ideia de cabeça, de capo (capolavoro), de pôr fim, término a um trabalho; de comemorar (comer e memorar) os frutos de um longo esforço que agora colhemos. Entretanto, num tempo tão performático como o nosso, no qual o produtivismo, a velocidade e o consumismo imperam hegemônicos, não há mais tempo para parar, para colher os frutos, para celebrar. Parar para decorar (enfeitar as coisas colocando o nosso coração) é visto agora como perda de tempo, desperdício de energia, desvio de função. Transformados em máquinas de performar, já não nos permitimos parar, pausar, decorar, enfeitar e nem mesmo comer e beber, elementos indissociáveis da experiência celebrativa da vida – pois imaginem a desgraça que é perder o shape fitness em vésperas do verão!  E assim, o apagamento das luzes vai indicando o esmaecer melancólico da nossa própria humanidade, da nossa saúde existencial.

A grande festa de final de ano, aquela que por tanto tempo tem resistido ao avassalador frenesi performático da modernidade, celebra um dos eventos mais tocantes e simbólicos da história da humanidade: o nascimento de uma criança que representa o desejo de um Deus que quis compartilhar o destino dos seres humanos. Frente a isso, os pastores deixaram seus rebanhos, e os sábios fizeram uma longa viagem para se dirigirem para onde brilhava uma nova luz. E nós, será que ainda nos resta pelo menos um pouco de curiosidade para deixarmos nossos compromissos inadiáveis para ir dar uma olhada, para contemplar o Presente que nos é dado em cada Natal? Se algo deste desejo, tão renovador e vivificante, ainda resiste em nós, então não percamos mais tempo e comecemos a procurar as luzes que indicam o caminho. Advirto, no entanto, que talvez tenhamos de procurar com nossa luz própria, pois as luzes de fora estão se apagando.

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