Um dos conceitos mais importantes para a filosofia socrática é o de epiméleia heauoú, geralmente traduzido como “o cuidado de si”. Para além do gnóthi seautón, ou “conhece-te a ti mesmo”, para que o ser humano se realize em sua plenitude, no sentido da sua saúde existencial, é preciso que ele, sabendo quem é e o que deve ser, cuide de si mesmo.

Essa ideia do cuidado de si, segundo Sócrates (sempre nas palavras de Platão, que foi quem transmitiu por escrito o ensinamento oral de seu mestre), começa com o cuidado do corpo – cuidado este que ele chama de dietética e envolve não apenas aquilo que se come, mas também como se come, o lugar em que se habita, os hábitos cotidianos, os exercícios, etc. Entretanto, o cuidado de si deve ir além da dimensão somática ou física do ser, confluindo para a parte mais nobre e superior do ser, que é a psiqué ou a alma.

Para Sócrates, o cuidado da alma, enquanto finalidade superior do cuidado de si, não se restringe ao que hoje chamamos de saúde mental. O cuidado de si enquanto cuidado da alma tem, na perspectiva socrática, um caráter eminentemente ético. Ele está ligado à busca da verdade, ao encontro daquilo que é belo, bom e excelente, tanto no âmbito existencial quanto no político, familiar, social. Ou seja, para se realizar plenamente, o ser humano deve não apenas se conhecer, mas conhecer a verdade, aquilo que é bom e belo em relação ao estar no mundo, como ser psíquico, espiritual, comunitário, político. Nesse sentido, cuidar de si é não apenas cuidar da própria saúde física e mental, mas também cuidar da saúde do outro, daqueles que estão ao redor, da família, dos amigos, dos concidadãos, da polis

Num momento em que se fala e se valoriza tanto a saúde, resgatar essa ideia do cuidado de si apresenta-se como algo essencial. Isso porque, na visão socrática, a verdadeira saúde encontra-se na dimensão da justa medida – ou seja, na isonomia ou no equilíbrio entre o físico e o psíquico, entre o esforço e o repouso, entre sono e a vigília, entre o pensar e o agir, entre o pessoal e o comunitário. 

Nos tempos que correm, observo que a busca pela saúde está sendo, muitas vezes, proposta e vivida de forma equivocada, desequilibrada. Há uma crescente preocupação com a “saúde” do corpo que, mais do que a justa medida, ambiciona apenas o shape e a performance. Em nome de uma “boa saúde”, sacrifica-se a verdadeira saúde, exigindo-se do corpo algo que vai muito além da justa medida. Como se exercícios e atividade física fossem apenas um meio de superação, de obtenção de metas, de resultados; como se nossos corpos fossem objetos de exibição erótica ou máquinas de alto rendimento. De repente, a imagem da saúde se reduziu a barrigas “trincadas” exibidas nas vitrines das milhares de academias de fitness que proliferam pelas cidades e a multidões de pessoas correndo cada vez mais rápido em bandos uniformizados com outfits sofisticados que valorizam as “curvinhas” e os músculos, com olhos vazios, mirando obsessivamente os watches tecnológicos, enquanto gemem ofegantes e “conversam” em voz alta sobre paces, tempos e metas. Nada mais distante da verdadeira saúde este espetáculo desarmonioso de agitação, ruído, obstinação e narcisismo.

Vigora hoje um conceito de saúde que produz gente doente. Gente magra, musculosa, bem “preparada”, capaz de percorrer dezenas de quilômetros em poucos minutos, mas, paradoxalmente, gente doente, porque desequilibrada no sentido humano, existencial. Gente que imagina apresentar belos corpos e belas performances, mas que é incapaz de reconhecer o que é belo e bom de verdade. Gente que cuida muito de seus corpos (mais do que o razoável, até), mas que perdeu a compreensão do que seja cuidar de si.

Para escaparmos da obsessão patológica da “saúde performática”, precisamos conhecer e vivenciar a experiência libertadora da saúde existencial. Para tanto, resgatar o conceito de cuidado de si apresenta-se como caminho oportuno e saudável. Para sermos saudáveis, não basta malhar; é preciso ler, conversar, pensar. É preciso saber andar mais devagar e olhar mais ao redor, para o outro e para si mesmo. Não para o próprio umbigo (na barriga tanquinho), mas para a própria alma.

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