O incomparável Shakespeare em muitas de suas tragédias insinua que há uma estreita relação entre as ações morais dos homens e os fenômenos da natureza. Crimes horrendos cometidos às ocultas, sem testemunhas e sem traços que possam indiciar seus perpetradores são pressentidos antes pelas perturbações que se verificam nos elementos da natureza do que na observação das atitudes e palavras tortuosas dos seres humanos. Eclipses inesperados, estiagens e tempestades ferozes fora de época e até mesmo os animais apresentando comportamentos insólitos denunciam que algo de muito podre ocorre no reino dos humanos.

“Isto que vemos é contranatural”, declara o velho que conversa com o nobre Ross na cena IV do Ato II de Macbeth. “Terça-feira passada, ao remontar-se em altaneiro voo, foi um falcão preado e morto por um mocho rateiro.” Secundando-lhe, diz o nobre Ross: “E coisa muito estranha e certa, os dois corcéis de Duncan, soberbos e velozes, os mais belos de sua raça, enfurecidos subitamente, despedaçaram suas baias, lançaram-se ao ar livre, refugando toda obediência, como em declarada guerra ao gênero humano.” Em suma, quando “a razão se opõe à natureza” (Hamlet, Ato I, Cena II), a natureza se encarrega de denunciar a razão. 

Interessante observar que em Shakespeare a noção de natureza é flagrantemente distinta daquela que vigora em nossa visão de mundo. Para nós, em geral, natureza designa tudo aquilo que está no mundo e que se distingue do humano: o reino mineral, vegetal, animal, atmosférico. Norteados pelo paradigma cartesiano, fomos ensinados a acreditar que existe uma separação radical entre a moralidade humana e a realidade natural. Sendo seres “racionais”, nós, humanos, passamos a nos considerar superiores à natureza, autorizados, portanto, a dominá-la e a usufruí-la a nosso bel prazer. Tal pressuposto epistemológico fundamentou a lógica predatória que vem caracterizando a chamada Modernidade e que nos trouxe até a situação atual, em que a natureza, aparentemente passiva e subserviente aos nossos caprichos racionais, passou a nos advertir, de forma incontestável, de que ela não é assim tão passiva e de que nós talvez não sejamos assim tão racionais. 

Para mentes clarividentes como Shakespeare, que, sem deixar de ser moderno, não rompe com a sabedoria ancestral que fundamenta e norteia a inteligência dos grandes artistas e poetas, não há solução de continuidade entre a natureza humana e a natureza das coisas do mundo. Não é apenas pelo nosso corpo animal, com seus instintos, suas necessidades e contingências, que pertencemos à natureza, mas também aquilo a que chamamos de alma, de intelecto, de espírito, participa intrinsecamente do destino do cosmos, como já sabiam os gregos – e como ainda sabem, por exemplo, muitos povos que vivem na África e os originários das Américas. Nossas ações morais repercutem não apenas no âmbito psicológico, político e social, mas também no cósmico. Na perspectiva cristã de um Paulo de Tarso, nosso destino existencial não se limita à realização do bem e à superação do mal no domínio do espírito e do convívio humano, mas está comprometido com a libertação de toda a criação: “A expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois à futilidade foi sujeita também a criação, não voluntariamente, mas por causa de quem a sujeitou, na esperança de que a própria criação venha a ser também liberta da escravidão da corrupção para chegar à liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre junto em trabalho de parto até agora.” (Rm 8, 19-22)

A sabedoria profunda nos ensina, portanto, que nós, seres humanos, não apenas participamos intrinsecamente da natureza de toda a criação, como também, pelo dom do logos, da razão, corresponde-nos um papel ou missão grandiosa em relação a ela: o da realização do seu “parto”, da sua libertação. Nesta perspectiva, somos, de fato, senhores, não no sentido fútil e distorcido que este termo assumiu ao longo da história, mas na acepção virtuosa da palavra, que remete à ideia de serviço, de cuidado e de libertação. J.R.R. Tolkien, em sua grande obra O Senhor dos Anéis, apresenta de maneira muito eloquente essa noção, por meio da misteriosa e curiosa personagem Tom Bombadil. Quando o hobbit Frodo, o portador do Um Anel, depois de haver sido salvo no interior da floresta pelo velho e alegre Tom e por ele conduzido à sua casa, ao encontrar com a sua companheira, Fruta d’Ouro, pergunta-lhe: “Linda senhora. Diga-me, se minha pergunta não parece tola, quem é Tom Bombadil? 

– Ele é – disse ela (…) – o senhor da floresta, das águas e das colinas. 

– Então toda esta região estranha lhe pertence?

– Na verdade não! – respondeu ela, e o sorriso que tinha no rosto desapareceu. – Isso seria um fardo pesado demais – acrescentou ela em voz baixa, como se falasse consigo mesma.

– As árvores e o capim e todas as criaturas que crescem e vivem neste lugar só pertencem a si mesmas. Tom Bombadil é o Senhor.” 

Tom Bombadil é o Senhor, mas não o dono das criaturas. Ele tem poder sobre elas, porém não as domina; não pode dispor delas a seu bel prazer, como nós homens e mulheres modernos fizemos em relação a tudo que nos cerca. Tom Bombadil é o Senhor porque ele é o guardião da floresta, das árvores, do capim, das flores, dos animais. E seu dever é o de guardar e proteger estas criaturas, a fim que elas, que são donas de si mesmas, realizem-se e encontrem a sua própria beleza. Este é o papel do Senhor. E as criaturas, que o servem, o respeitam e o amam, reconhecem nele aquele filho de Deus de que fala Paulo de Tarso, aquele que usa o dom da razão para libertar a criação da corrupção e da servidão, para realizar o parto da sua própria realização.

Para ser Senhor da criação, o ser humano, entretanto, deve primeiro ser senhor de si mesmo. Para libertar a criação da escravidão da futilidade e da corrupção, os filhos de Deus devem se libertar eles mesmos de sua própria futilidade e corrupção. A rebelião da natureza que denuncia a corrupção moral da humanidade, tal como assinala Shakespeare em suas grandes tragédias, é, portanto, o recado claro e preciso da criação que aguarda e necessita de um Senhor, e não de um dominador cego e inconsequente.

Tomando a literatura como expressão da sabedoria perene e despertadora das nossas consciências, podemos encontrar, com facilidade, uma pertinente chave de leitura daquilo que a natureza, num contexto de crise climática e desequilíbrio, está tentando nos comunicar: é tempo de deixarmos de exercer o papel de dominadores  para começarmos, a exemplo de Paulo e Tom Bombadil, a sermos Senhores. E isso significa sermos livres. Uma vez livres – livres da corrupção da nossa própria futilidade e das nossas paixões –, servir. Servir para parir, cuidar e libertar nossos semelhantes e a própria criação.

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