Fiz minha primeira viagem à Europa no longínquo ano de 1986. Acompanhava meu avô Manoel Claramonte Lopéz (Manolo) por um périplo às suas raízes, ao seu passado na Espanha. Foi uma experiência inesquecível, arrebatadora. Entrar em contato com aquelas paisagens tão inusitadas, tão diferentes, encontrando com pessoas que habitavam o meu imaginário graças às histórias contadas por Manolo desde a minha mais tenra infância e que então se materializaram em carne, osso e voz diante de mim teve o impacto de uma verdadeira revelação. Aqueles eram tempos em que a tecnologia era ainda analógica, em que os registros só podiam ser feitos por fotos em película e em que as impressões e reflexões exigiam um caderno de notas, preenchido de forma manuscrita. Nessa era pré-internet e redes sociais, o compartilhamento das experiências, sempre limitado aos parentes e amigos mais próximos, exigia um tempo considerável, condicionado pela revelação das 36 poses  – parcimoniosamente calculadas e capturadas – em papel e pela elaboração de mais ou menos longas cartas, também manuscritas, que necessitavam de envelope, selos e um tempo de aproximadamente uma semana para chegar aos seus destinatários. As respostas, quando vinham, também tardavam outras infindáveis semanas. 

Lembro-me de que nessa ocasião – e em outras semelhantes ao longo da vida – alimentava a fantasia de como seria fantástico se meus parentes e amigos mais próximos pudessem participar de alguma forma de tudo aquilo que eu estava vendo, presenciando, no mesmo instante. Fantasiava então que tudo aquilo que eu captava com meus olhos pudesse ser transmitido em tempo real para aqueles destinatários imaginários, como se eles estivessem vendo o que eu estava vendo, ouvindo o que eu estava ouvindo. Dando-me conta, entretanto, da mescla de generosidade e narcisismo que havia nesse exercício de imaginação, assim como de seu caráter infantil, as circunstâncias me obrigavam a aceitar a realidade e me levavam a proceder de forma propriamente madura: experimentar tudo na solidão da minha subjetividade, destilando, refletindo e elaborando todas aquelas experiências para que, oportunamente, pudessem ser  compartilhadas.

Pouco menos de quatro décadas depois, aquela fantasia infantil tornou-se realidade. Depois do advento da internet, dos smartphones e das redes sociais, todas as nossas vivências – desde uma viagem à Europa até um simples passeio no parque do bairro – podem ser compartilhadas em tempo real, ao vivo e em cores. De repente, todas as minhas experiências, o que estou experimentando agora mesmo, pode ser assistido, testemunhado por centenas e até milhares de pessoas, dependendo do número de followers que possuo, no exato momento em que as estou vivendo, podendo inclusive receber impressões e comentários instantâneos ou poucos minutos depois. De forma revolucionária, nossa vida se transformou num verdadeiro reality show, no qual nós somos, ao mesmo tempo, produtores, diretores e atores. A tecnologia digital tornou realizável uma das nossas mais incríveis e narcisistas fantasias de adolescência. Desde então, não precisamos e (quase) não podemos mais viver solitariamente nossas vidas. É como se nossa intranscendente existência passasse a ser um filme, uma série, que, em maior ou menor grau, estivesse sendo acompanhada pelos outros, como, em outras épocas, era o privilégio de algumas poucas celebridades.

Acredito que ainda seja cedo para avaliar todos os efeitos desse fenômeno na vida social, psíquica e existencial das pessoas que passaram a viver desse modo. Para além do espetáculo triste e patético de centenas de sujeitos que morrem ao falhar em fazer alguma self em condições de extremo risco, e de outros que transformam cada situação comezinha da vida numa cena cinematográfica que, supostamente, irá interessar aos seus seguidores e, quem sabe, viralizar – como, por exemplo, a preparação de um espaguete à carbonara ou uma magnífica performance em aparelhos de uma academia de fitness –, outros aspectos dessa superexposição existencial precisam ser levados em consideração. 

Para irmos além em nosso questionamento, é importante pensar no que significa estarmos transformando nossas vidas não em uma realidade a ser vivida, mas sim em uma performance a ser postada. Se cada passo que vamos dar, cada passeio que vamos fazer, cada lugar que vamos visitar, cada livro que vamos ler, cada pequeno trabalho profissional ou doméstico que vamos realizar é preciso ser postado, compartilhado, talvez seja o caso de nos perguntar o porquê o estamos fazendo: por que queremos, por que nos toca fazer ou por que pretendemos postar? Será que não estamos transformando nossas vidas em um self stream veiculado diariamente com a desculpa esfarrapada de que estamos fazendo um bem para quem nos acompanha? Será que nos imaginarmo influencers do bem (sempre do bem, claro) não seria uma armadilha narcisista absurda e triste que nos aprisiona num roteiro definido por nós mesmos, de acordo com os padrões sociais do mercado? 

É claro, pode-se objetar que se mesmo postando apenas nosso café da manhã ou a maneira como amarramos os sapatos nosso número de seguidores cresce e os comentários se multiplicam, tal estilo de vida é algo útil e justificável. Porém, será que é suficiente para nos realizarmos enquanto seres humanos, ainda que talvez possa até ser um meio de monetização? Há que se perguntar e se pensar muito ainda se uma vida que vale a pena ser postada é uma vida que vale a pena ser vivida.

Uma vida que vale a pena ser vivida é certamente uma vida a ser contada. Mas para que valha a pena ser contada, ela primeiramente precisa ser vivida. E viver de verdade exige um certo grau de solidão, de experiência; de experiência vivenciada no segredo e na reflexão. Entre o viver e o compartilhar há um fator essencial e indispensável: o tempo. Só o tempo é capaz de discernir e peneirar o que vale e o que não vale a pena ser compartilhado, postado. Transformar a vida num espetáculo imediatista é esvaziá-la de densidade e sentido. Será que não estamos nos constituindo em versões digitais de nós mesmos? Será que ao realizarmos nossa fantasia imatura de uma vida postada e assistida não estamos perdendo a oportunidade de nos realizarmos como seres humanos que amadurecem na justa medida da solidão, do anonimato e da reflexão no fluxo do tempo?

Deixe um comentário

Tendência