Na última parte do primeiro volume de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, depois de haver passado por dezenas de aventuras, loucuras, sofrimentos e alegrias, vamos encontrar o “Cavaleiro da Triste Figura” aprisionado em uma desmazelada jaula de madeira, que seus amigos haviam improvisado para levá-lo para casa com a intenção de “curá-lo” da estranha e inédita “enfermidade” que o havia acometido após ter lido incontáveis livros de cavalaria. Utilizando recursos lúdicos e teatrais, adequados ao “imaginário delirante” do velho manchego, os companheiros e companheiras simulam uma cena de encantamento à qual o Quixote corresponde, deixando-se prender, na esperança de, em breve, voltar a ficar livre e assim consumar sua grande missão de salvar a princesa Micomicona da tirania do gigante, ser recompensado com seu agradecimento e angariar fama e fortuna.
Saindo de uma velha e decadente pousada de beira de estrada, assim parte a estranha comitiva, que, alguns quilômetros adiante, chama a atenção de um erudito cônego que se aproxima curioso. Ao ser informado sobre o propósito de tudo aquilo, ele deseja entrevistar pessoalmente o insólito louco para tentar compreender a inédita etiologia de raiz literária.
Munido de uma autoconfiança pretensiosa que só a formação acadêmica pode proporcionar, o cônego interroga Dom Quixote e, chegando a um diagnóstico de loucura por excesso de leitura de livros fantasiosos, procura em seguida administrar uma terapêutica baseada na argumentação lógica e racional, fundamentada na apresentação de evidências históricas e realísticas que desarmam qualquer descaminho ficcional, produto da pura fantasia imaginativa. De todos os mirabolantes embates vividos pelo cavaleiro de la Mancha, este, sem dúvida, é um dos mais difíceis e sérios — e, curiosamente, o único do qual sai vencedor. Rebatendo com maravilhosa acurácia cada um dos argumentos do “psicoterapeuta” itinerante, o “louco” o deixa desarmado e, ao final, aplica-lhe uma estocada fatal. Subvertendo as regras e o “campo” da batalha impostos pelo cônego, Dom Quixote desloca o embate de uma lógica argumentativa-conceitual para a do terreno narrativo-imagético. Deixando de responder aos questionamentos do seu interlocutor, ele passa a contar uma história, tirada de um dos fantásticos livros de cavalaria que tão bem conhecia.
Nessa história, um heróico cavaleiro, empenhado em libertar sua inspiradora donzela, se depara com um enorme lago de piche fervente que lhe obsta o caminho. Estacado frente ao intransponível obstáculo e já pensando em como poderia superá-lo, ouve uma voz misteriosa que lhe informa que a única maneira de chegar até sua amada seria atirando-se à terrível e sombria lagoa. Enfrentando corajosamente o medo da dor e da morte, o cavaleiro se atira. E eis que, por um efeito mágico produzido pelo amor, o piche se transforma em fresca e límpida água, a qual ele transpassa num só mergulho. Ao atingir o fundo, ele se vê milagrosamente emergido na terra seca de um reino maravilhoso, onde é acolhido por fadas e outras criaturas fantásticas que lhe proporcionam todos os prazeres sensíveis e também da alma e do espírito. Ao concluir seu envolvente relato, Dom Quixote arremata:
Creia-me vossa mercê e, como já lhe disse, leia estes livros, e verá como lhe desterram a melancolia que tiver e lhe melhoram a condição, se acaso a tiver má. De mim sei dizer que, desde que sou cavaleiro andante, sou valente, comedido, liberal, bem-criado, generoso, cortês, atrevido, brando, paciente, sofredor de trabalhos, de prisões, de encantos; e ainda que tão pouco me tenha visto preso numa jaula como louco, penso, pelo valor do meu braço, favorecendo-me o céu e não me sendo contrária a fortuna, em poucos dias ver-me rei de algum reino, onde eu possa mostrar o agradecimento e liberdade que o meu peito encerra.
Desconcertado, o licenciado capitula, esporeia seu cavalo e puxando as rédeas para o lado se afasta, conjeturando sobre quem seria o são e quem seria o enfermo depois daquela conversa.
Resgatei essa fantástica cena de Dom Quixote recentemente, ao ser convidado a prefaciar um livro sobre biblioterapia que deve ser lançado em breve. Toda vez que sou demandado a falar ou escrever sobre o caráter terapêutico da literatura, inevitavelmente lembro-me dessa passagem. Seguindo a lógica do Cavaleiro de la Mancha, constato que não há melhor maneira de explicar o efeito salutar que a leitura dos livros de ficção pode produzir nas pessoas que se encontram nessa situação evocada pelo herói cervantino: tomadas pela melancolia, pela tristeza, pela ansiedade.
Aliás, ninguém melhor do que ele, um velho fazendeiro falido, solitário e frustrado, poderia testemunhar essa experiência de despertar e de transformação existencial que a leitura dos livros de ficção proporciona. Tirando-o da depressão e do fatalismo, as maravilhosas histórias de cavalaria não apenas deslocam o foco de atenção das condições limitantes da “realidade” psíquica obcecada, como também, ao mobilizar conteúdos dormentes da mente e do coração, descerram horizontes inéditos da existência, abrindo novas possibilidades não só de ver, mas de viver a vida de uma forma diferente, mais plena e saudável.
Do ponto de vista das pessoas “normais”, essa nova forma de existência adotada por Dom Alonso de Quesada (nome de registro de Dom Quixote de la Mancha) não passa de uma arrematada loucura, perigosa e incômoda, que precisa ser dominada e tratada – daí o sentido simbólico do seu aprisionamento numa jaula de madeira e seu “enquadramento terapêutico”. Entretanto, o debate inusitado com o “sensato” e “realista” cônego, representante da perspectiva normalizadora da existência humana, mostra que o que a princípio se entende como “sanidade” parece ser a verdadeira raiz da loucura que nos acomete. Por outro lado, aquela que comumente se encara como “loucura” a ser tratada apresenta-se como a fonte da saúde existencial.
Passados mais de quatrocentos anos da publicação da obra fulcral de Miguel de Cervantes, percebemos que a crença obtusa no “realismo” e no “racionalismo”, fundamentos da cosmovisão moderna, com sua insistência em nos manter prisioneiros do “modo Dom Alonso” — ou seja, limitados aos papéis sociais normalizados —, acabou por produzir uma humanidade triste, ansiosa e depressiva. Hoje, mais do que nunca, faz-se necessário voltarmo-nos à literatura, à fantasia e à poesia se quisermos encontrar uma maneira de reencontrarmos nossa saúde existencial. Saúde esta, aliás, que passa inevitavelmente pela loucura: pela loucura de ler, de se deixar inspirar e de ousar. Ousar ser louco, ser livre, ser o que nos cabe ser na realização da nossa própria beleza.






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