Num mundo tão desclericalizado como o nosso, tão distante de ritos e processos eclesiásticos (vistos, inclusive, como resquícios dos tempos das trevas), não deixa de chamar a atenção a expectativa emocionada com que a mídia e a sociedade em geral — e não só os católicos em particular — acompanharam o processo de eleição do sucessor do papa Francisco. Confesso que fiquei admirado de ver como muitos conhecidos, na maioria agnósticos e ateus, envolveram-se no drama do conclave, manifestando preferências e aguardando ansiosamente o resultado.
Descontada a “providencial coincidência” do lançamento do filme de Edward Berger, laureado com o Oscar de melhor roteiro adaptado, desconfio que o inusitado interesse pela transmissão do cargo máximo da Igreja Católica em meio ao clima apocalíptico que estamos vivendo transcenda a febre por apostas que nos acomete. Apostaria dizer (sic) que há algo mais, algo de maior neste fenômeno, que vale uma reflexão mais atenta.
Em um contexto de profunda crise de liderança mundial, uma vez que os “grandes” líderes despontam, em sua maioria, como figuras caricatas de profundo mau gosto, a existência de uma personalidade como a do papa Francisco, caracterizada pela abertura ao diálogo, à tolerância e à defesa dos excluídos, marginalizados e refugiados de uma dinâmica política e econômica materialista, egoísta e truculenta, representa uma brisa fresca de esperança num cenário árido e desesperador. Assim, o seu desaparecimento gera um sentimento de orfandade e desamparo, não apenas para os que o reconhecem como pastor espiritual, mas para todos os que se habituaram a ouvir palavras e ver gestos de empatia, humildade e solidariedade, num mundo marcado pela competição, indiferença e mesmo ódio. Em certo sentido, a morte de Francisco é sentida como uma espécie de perda de humanidade; humanidade esta tão preciosa quanto rara, num mundo radicalmente desumanizado. A morte de Francisco parece haver colocado a consciência coletiva num estado de estupor e expectativa: e agora, quem em nosso mundo fará o contraponto a esses valores destrutivos fantasiados de “progresso”, “eficácia” e “ordem”, que mal disfarçam o egoísmo, a ganância e os interesses escusos de grupos, empresas e indivíduos? É como se esse testemunho de um velhinho terceiro-mundista, líder de uma instituição em crise, que perde adeptos a cada dia, mas que se colocou claramente do lado dos “inúteis” e “indesejáveis”, se apresentasse como o último bastião da esperança em um mundo acossado pelo desespero.
A expectativa em torno da sucessão do papa representa, portanto, a expectativa, consciente ou inconsciente, da continuidade deste testemunho e desta voz dissonante; desta mensagem de que, apesar do avanço solapador e aparentemente incontinente do capitalismo depredador, aliado à eugenia supremacista dos detentores do poder e do controle das novas tecnologias, mantém-se firme em defesa daquilo que é próprio do humano. Por isso, a inusitada comoção que a expelição da fumaça branca pela chaminé do Vaticano na última quinta-feira, dia 8 de maio, provocou. Neste momento, foi como se uma parcela significativa da humanidade tivesse parado de respirar, esperando a definição do seu destino. Poderemos continuar a ter esperança ou ficaremos radicalmente órfãos?
Quando, após longos e torturantes minutos, o representante eclesiástico aparece na sacada da Basílica e anuncia num incompreensível latim o nome do cardeal eleito, a suspensão da respiração deu lugar a um atônito atordoamento: Quem? De quem se trata? Americano? Bispo de onde? No Peru? Eis que então surge a figura. Sentimentos contraditórios se digladiam: o rosto é relativamente jovem e simpático, mas as vestes e os paramentos encarnados contrastam com a alva simplicidade com que se apresentou Francisco na mesma ocasião 12 anos antes. Suas primeiras palavras, entretanto, têm um efeito apaziguante e alentador: Leão XIV (este é o nome escolhido, que, para quem conhece um pouco da história contemporânea, remete ao autor da Rerum Novarum, documento que fundamenta toda a chamada doutrina social da Igreja ) começa, num italiano bastante claro e seguro para um americano, repetindo a saudação usada por Jesus Cristo após a sua ressurreição, desejando a paz. Ele insiste na oferta da paz, convida a não ter medo e a alimentar a esperança, mesmo não havendo muitos motivos humanos para tanto. Pouco mais adiante, em seu curto e contundente discurso, declara que sua missão será a de construir pontes. Num mundo onde os abismos se abrem cada vez mais largos e profundos, ele, fazendo jus ao seu título e à vocação de pontífice, propõe lançar pontes. Por fim, desarmando os corações e aquecendo a esperança, o novo papa faz um agradecimento emocionado a seu antecessor, reconhecendo seu legado e manifestando seu compromisso em dar-lhe continuidade. E então, depois de dirigir algumas palavras — também de agradecimento, em espanhol — aos seus antigos colaboradores e ao povo da diocese de Chiclayo, onde foi bispo, Leão XIV, sucessor de Francisco, termina visivelmente emocionado, com lágrimas nos olhos.
Assim, o mundo — ou pelo menos uma parte do mundo, a que acredita e deseja a paz e concórdia entre os homens e mulheres de boa vontade — voltou a respirar. Habemus papam, continuamos a ter motivos para ter esperança, para acreditar que um outro mundo é possível, apesar dos pesares. Ainda é cedo, eu sei. Porém, pelo menos, o primeiro sopro dessa nova era que começa é um sopro forte, poderoso, carregado de esperança.
Em sua última encíclica, o papa Francisco ensina que toda esperança vem do coração. Mas não só a esperança; também todo amor e toda autêntica inteligência. É tempo de reconstruir a humanidade a partir do coração. Leão XIV, em seu escudo, colocou a imagem (que remete a Santo Agostinho) de um coração em chamas, perfurado por uma flecha. Dizem que as lágrimas brotam no coração. Os sinais deste novo pontificado são alvissareiros. Deixemos que nosso coração respire esperançado. Ele tem bons motivos.






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