Creio que depois do medo da morte e do envelhecimento, o terceiro maior causador de angústia, principalmente em nossos tempos tão angustiados, seja o da perda da memória. À medida que nossa sociedade vai envelhecendo e, concomitantemente, ficando mais longeva, vai crescendo nosso pavor diante da possibilidade de que sejamos vítimas do mal de Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas.
Por mais que esse seja um dos campos etiológicos mais pesquisados hoje em dia, as incertezas superam em muito as poucas certezas, e a combinação de fatores desencadeadores dessas doenças de grande espectro são de tal ordem que a mera evocação de alguns deles são suficientes para que comecemos a sentir, de forma sugestiva, alguns dos sintomas. E ainda que não possa aqui apresentar evidências científicas, parece-me que quanto mais tememos perder a memória, mais contribuímos para que comecemos a esquecer, principalmente das coisas mais essenciais e importantes da vida.
Não é curioso que esse pânico frente ao “colapso memorialístico” do ser humano emerja justamente no momento em que a internet e a inteligência artificial passaram a se constituir como ilimitados repositórios da memória da humanidade? Uma vez que a estocagem da memória possa ser terceirizada, para que se preocupar em guardá-la conosco, ocupando espaço em nosso cérebro? Porém, se não o ocuparmos com as nossas memórias, com que iremos ocupá-lo?
Acredito, entretanto, que essa síndrome do pânico do esquecimento esteja diretamente relacionada com outro fenômeno, igualmente grave, porém muito mais antigo: o da “comotidização” da memória. Explico-me: num mundo em que tudo se tornou mercadoria, podendo ser acumulado e vendido, e onde as pessoas passaram a ser e a valer em função daquilo que possuem, esquecer passou a ser visto como uma forma de descapitalização. Atualmente tememos esquecer as coisas da mesma forma como tememos perder ações na bolsa de valores, ou ver nosso capital desvalorizando por causa da inflação e nossos bens depreciados pela passagem do tempo. Essa ansiedade, típica da modernidade capitalista, antes restrita ao dinheiro e às coisas, acabou contaminando aspectos cada vez mais íntimos da nossa existência, afetando inclusive nossa forma de conceber a memória.
Henri Bergson (1860-1941), importante filósofo francês que revolucionou a maneira de pensarmos a memória, tanto individual quanto coletiva, mostrou-nos que tão importante quanto lembrar é saber esquecer. Ou seja, para que possamos lembrar, principalmente aquilo que importa, aquilo que é essencial para nossa existência, é necessário esquecer. Se quisermos guardar tudo, acabaremos sem nada, pois afinal de contas, somos seres limitados, e não nos é próprio possuir tudo. A memória, assim como todas as outras dimensões da vida, exige um esforço de escolha, de discernimento. Tão importante quanto querer lembrar é saber esquecer, ou, se preferir, não se importar em não se lembrar de tudo o tempo todo.
Tal maneira saudável, propriamente humana, de viver a memória e esquecimento, encarna-se num personagem literário criado por Liev Tolstói, presente numa de suas grandes obras, Guerra e Paz: Platon Karatáiev. Mujique pobre, simples, semianalfabeto, Platon simboliza a sabedoria que se manifesta de forma espontânea e translúcida no trabalhador do campo, que sofre os reveses da vida com a mesma disposição com que goza os pequenos prazeres. Tendo sido recrutado à força para lutar contra os franceses durante a invasão napoleônica da Rússia, Platon se encontra com Pierre, o grande herói aristocrático do romance de Tolstói, em um campo de prisioneiros, depois do incêndio de Moscou. Pierre, um idealista desiludido e descrente da humanidade depois de presenciar tantos horrores, é literalmente convertido pela presença cálida e resiliente do “falcãozinho” Karatáiev, como era chamado por todos, prisioneiros e guardas. A sabedoria e o sentido da vida que Pierre havia buscado em vão nos livros, nas religiões e nos filósofos apresentavam-se finalmente vivos e reais nas palavras, gestos e ações do pequeno Platon. Diante de uma situação a princípio insustentável ou de um dilema moral aparentemente insolúvel, o mujique filósofo apresentava a palavra certa, um ensinamento tão lírico quanto simples, que norteava, consolava, abria novas perspectivas. Quando Platon, como que “do nada” soltava uma daquelas frases ou ensinamentos – muitas vezes adágios populares ou coisas claramente inventadas por ele de forma inspirada e oportuna – e Pierre, atônito, pedia-lhe que a repetisse, com a intenção de anotá-la ou pelo menos guardá-la na memória, Platon já não se lembrava. Desconcertado, Pierre lhe dizia: “Como assim, não se lembra? Você acabou de dizer!” E Platon lhe respondia: “Ela me veio quando era necessário, agora já não é mais. A memória é como um potro selvagem, não se deixa dominar. E isso é muito bom. Quando for preciso ela volta e ajuda, não se preocupe.”
Talvez estejamos procurando a cura para nossa síndrome do pânico da memória em lugar errado. Não que a ciência não tenha nada a nos oferecer nesta questão. Porém, a lição e a atitude vital de um Platon Karatáiev podem indicar um caminho muito poderoso para nossa saúde existencial.






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