Não é de ontem que venho sentido um crescente incômodo – que por vezes aflora como declarada irritação — com meu celular. E não é pelo fato de que não esteja funcionando bem, mas pelo contrário – apesar de não ser um iPhone 16 Pro Max e nem mesmo um iPhone — ; é justamente por estar cada dia melhor: mais “inteligente”, “intuitivo”, “smart”… E é por estar cada vez melhor que ele vai se tornando progressivamente necessário, indispensável. De tudo aquilo que não pertence ao meu corpo, hoje, sem dúvida, é o meu celular o objeto que mais tempo passa comigo e que mais priva de minha intimidade, uma vez que não só vigia ao meu lado na mesinha de cabeceira enquanto durmo, como me acompanha ao banheiro nos momentos de necessidade e está sempre presente à mesa (literalmente) durante minhas refeições. E toda essa onipresença “smártica” talvez não fosse sequer percebida como um problema caso não me deparasse com dois fenômenos: um, o fato de não ser o único no mundo a ser um “smart adicto”; dois, a difusa, mas efetiva, consciência de estar perdendo o controle da minha própria vida.
Refletindo um pouco sobre o primeiro fenômeno, constato que nos escassos momentos em que tenho oportunidade de me encontrar com as pessoas, principalmente as mais queridas e importantes para mim, estas normalmente vêm acompanhadas de seus respectivos smartphones, e que, portanto, fica cada vez mais difícil contar com atenção minimamente razoável da parte delas, uma vez que é quase impossível que não estejamos sendo interrompidos, a cada dois minutos, não só pelas estridentes chamadas — em 99 por cento dos caso, meros spams —, mas também, e principalmente, por sutis vibrações que anunciam a chegada de mensagens no whatsapp, e que, claro, exigem imediata resposta, por mais intranscendentes que sejam. Sem falar no hediondo, porém cada vez mais incontrolável costume — ou melhor, vício — de, descaradamente, dar uma checada no Instagram no meio de uma conversa, aproveitando um momento de impasse do nosso interlocutor que talvez esteja se preparando para falar de algo mais delicado e sensível, ou, simplesmente, porque estejamos demonstrando, de forma inconsciente porém declarada, nosso puro desinteresse. E assim vamos jogando essa nova modalidade de se relacionar com os outros presencialmente. Jogo estúpido e cruel, cujo amargor só percebemos quando somos vítimas e não algozes — ou seja, quando estamos demais precisando ou fazendo questão da atenção do outro e este está respondendo a qualquer um no whatsapp ou, quando não, plácida e incontinenti, rolando a barra de feeds no Insta enquanto falamos.
Em comparação com o primeiro fenômeno — mais universal e constatável —, o segundo é muito mais sutil e subjetivo. Dele procede, pelo menos para mim, uma sensação de mal estar e irritação menos contundente e dramática que aquela que provém do primeiro, porém não inferior em termos de amargor e desespero. Isso porque vou percebendo a perda paulatina do poder de concentração, da capacidade de começar e terminar uma tarefa de forma contínua, sem interrupções, e — o pior de tudo —, a sensação de incapacidade de ficar sem saber de nada, pelo menos por um breve período de tempo; da impossibilidade de ficar incomunicável com o mundo para poder comunicar-me apenas comigo mesmo e com aquilo que vive no mais profundo do meu ser. Tal condição existencial vai gerando uma crescente ansiedade, pois a qualquer momento, sem que eu tenha mais nenhum controle, uma mensagem pode chegar e interromper o fluxo daquilo que devo ou quero realizar — por exemplo, agora mesmo, enquanto escrevo estas linhas, meu whatsapp pode apitar, informando que uma nova e imprevisível mensagem acaba de chegar, colocando-me no mais recorrente dos dilemas da vida cotidiana: devo olhar agora? Serei capaz de resistir e deixar para depois que terminar? Isso sem falar na operação cada vez mais automática que é a de, nos momentos de pausa, de espera ou simples ócio, num gesto quase tão instintivo quanto o de respirar, deslizar o dedo indicador sobre a telinha para olhar as últimas notícias ou ver a sequência de stories do meu Insta. O mal-estar que, no fim do dia, tudo isso causa é sintoma claro da perda da liberdade interior ou daquilo que os antigos chamavam simplesmente de alma.
Não foram poucas as vezes que comparei os cada vez mais sofisticados smartphones aos dementadores — aquelas criaturas monstruosas que na obra de J.K. Roling (Harry Potter) sugam as almas dos bruxos. Mais recentemente, entretanto, não consigo parar de lembrar de um outro objeto, talvez mais terrível e poderoso, pois, apesar de produzir o mesmo efeito dos espectros harrypotterianos, possui a virtude de sedução que só uma joia preciosa é capaz de ter. Sim, refiro-me ao Um Anel, aquele que foi feito para todos dominar, conforme a fantástica narrativa de J.R.R. Tolkien. Isso porque aquele que o usa se sente incrivelmente poderoso, capaz de ver sem ser visto, de dominar sem ser dominado. Mas essa sensação, como demonstra a experiência das personagens que o possuíram em algum momento, é falsa e enganadora, pois aquele que possui o Anel é, na verdade, possuído por ele e na mesma medida em que é fascinado por ele é também sugado, tornando-se, sem perceber, um mero instrumento do seu senhor. Com o tempo, aquele que o usa vai se transformando num espectro, um joguete na mão de um outro, afundando na escuridão. E como nos ensina Tolkien, a única forma de vencermos tal poder é se desfazendo do Precioso na Montanha da Perdição. Não estou sugerindo, caro(a) leitor(a), que joguemos nossos celulares na boca de algum vulcão. No entanto, será preciso encontrar alguma forma de controlar seu poder sobre nós para que o Precioso não nos consuma e nos desumanize miseravelmente.






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