Já faz um tempo que toda vez que abro um documento para digitar um texto em meu computador sou gentilmente abordado pela Inteligência Artificial, que me pergunta se gostaria de ajuda para escrevê-lo. Invariavelmente, tenho dispensado a gentil oferta. Não porque despreze ou desconfie da capacidade da IA de produzir algo coerente e interessante, que, evidentemente, me pouparia tempo e trabalho, mas porque acredito que aquilo que me proponho a escrever geralmente é algo que nenhuma outra inteligência, seja natural ou artificial, poderia ou deveria me ajudar a escrever. 

Reconheço que durante um bom período de nossas vidas a tarefa de escrever está quase sempre determinada por demandas e obrigações técnicas, formais, rotineiras. Já perdi a conta da quantidade de relatórios de pesquisa, avaliações, comentários, artigos encomendados e coisas semelhantes que tive de escrever e que, se os tivesse de fazer hoje, certamente apelaria para a IA. Aquelas centenas de produções que mal concluídas já as esquecia, sentindo uma sensação de alívio, naquele espírito de puro check, de tirar da frente e dizer: next. Entretanto, havendo aprendido com a experiência dos muitos anos, com os ensinamentos dos grandes mestres da sabedoria e com a graça divina que o processo de amadurecimento se concretiza no desprendimento e na superação dos compromissos técnicos e carreiristas, fui me libertando dessas obrigações enfadonhas e produtivistas. Na medida em que me aproximo da velhice, percebo que o ato de pensar e escrever vai deixando de ser uma operação profissional para se tornar, cada vez mais, numa operação espiritual, algo que contribui para meu autoconhecimento e autorrealização e que considero, eventualmente, útil compartilhar — como é o caso destes pequenos ensaios que publico. 

Encarando, portanto, o trabalho da escrita como uma necessidade pessoal e um exercício de conhecimento e autoaperfeiçoamento que deseja uma interlocução com você, querido(a) leitor(a), de que me serviria a ajuda da Inteligência Artificial? Poderia ela me ajudar a expressar melhor do que a minha restrita e falha inteligência natural as incoerentes e pobres ideias e intuições que brotam do meu conflituoso coração? E, ainda que ela, com sua precisão formal, ortográfica e gramatical, pudesse eventualmente ajudar, o que seria desse doloroso prazer de plasmar, por mim mesmo, gastando tempo e energia, frases minimamente coerentes que dão vida a essas ideias e intuições que eu mal compreendia antes que aparecessem aqui escritas? 

Recentemente, relendo pela enésima vez a instigante novela Franny & Zooey, de J.D. Salinger — o mesmo de O Apanhador no Campo de Centeio —, encontro a seguinte frase do Bhagavad Gita: “Tendes o direito a trabalhar, mas somente por amor ao trabalho. Não tendes o direito aos frutos do trabalho. O desejo pelos frutos do trabalho jamais deve ser o vosso motivo para trabalhar. Tampouco vos entregueis jamais à indolência. (…) O trabalho realizado com ansiedade pelos resultados é muito inferior ao trabalho feito sem essa ansiedade, na calma da vossa entrega total. (…) Aqueles que trabalham egoisticamente com mira nos resultados são infelizes”. 

Mais uma vez: não nego que a Inteligência Artificial possa ser de grande utilidade em diversas situações de nossas vidas, especialmente naquelas em que os frutos do trabalho sejam mais importantes do que o processo do trabalho em si. Entretanto, se cedermos à irresistível oferta que este recurso, cada vez mais sofisticado e eficaz, nos oferece, não estaríamos abrindo mão de uma das maiores fontes de felicidade e de humanização que dispomos: a do doloroso prazer do trabalho — processo este que não apenas produz coisas, mas nos produz e nos faz frutificar na medida em que buscamos seus frutos? Será que ao aceitarmos a ajuda cada vez mais efetiva e cômoda da IA em nome da finalidade produtiva e da economia de tempo não acabaríamos comprometendo não só nossa capacidade de desenvolver nossa própria inteligência, mas também nosso humano privilégio de encontrar a felicidade no processo de pensar, trabalhar, escrever?

Temo que se não aprendermos a dispensar, na justa medida, a ajuda da Inteligência Artificial, acabaremos, num futuro muito próximo, por ficar absolutamente desamparados da nossa própria inteligência, a única que pode fazer de nós pessoas de verdade.

Deixe um comentário

Tendência